domingo, 11 de janeiro de 2009

Contenção da Selvageria



Saiu na Folha de Domingo, no caderno Mais!, um artigo ao qual, após enormes diálogos, vem confirmar a serventia do jornalismo que hoje é amplamente lembrado por cobertura de casamentos e fofocas. Escrito por José Hamilton Ribeiro, que sou fã e foi um exemplo que me ajudou a decidir minha carreira, discorre exatamente àquilo que entendo por 'direito de saber' e o equilíbrio que uma boa cobertura (hoje acompanho a guerra com o Estadão e a Folha) pode fazer a diferença para criar uma opinião sobre o fato.
Para quem tiver a oportunidade de comprar ainda hoje, vale a pena.
Segue o artigo ( http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1101200906.htm ):

Contenção da selvageria

--------------------------------------------------------------------------------
O repórter José Hamilton Ribeiro avalia o papel do jornalista e o trabalho da imprensa em conflitos militares, da Guerra do Vietnã, que cobriu, ao atual Oriente Médio
--------------------------------------------------------------------------------


JOSÉ HAMILTON RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma das imagens mais fortes da Guerra do Iraque foi a captura de Saddam Hussein, em dezembro de 2003, àquela altura talvez o homem mais procurado do mundo (ao lado de Osama bin Laden).
Depois de tantos anos de "reinado", Saddam fugira com alguns milhões de dólares e, quando os americanos deram nele, estava num buraco, com a comida apodrecendo, a barba crescida (parece até que com piolho), sujo e descuidado.
Uma imagem patética. O médico usou uma espátula de cartão para examinar sua garganta, a língua, os dentes. Saddam a tudo olhava como se não estivesse entendendo. Enfim, uma grande repor- tagem!
Detalhe: não havia jornalistas em volta. A imagem, o áudio, o contexto -e, por fim, quase que até o texto- tinham sido feitos pelo Exército americano.
Esse episódio permite uma comparação da cobertura jornalística entre a Guerra do Vietnã e a do Iraque. Houve um momento em que havia 300 correspondentes estrangeiros no Vietnã. As cenas paradigmáticas da guerra -o bonzo se queimando, a menina nua correndo do napalm, o suspeito sendo executado num canto da rua, a chacina de My Lai- foram documentadas e acabaram aparecendo no jornalismo do mundo todo.
Por circunstâncias especiais -uma delas a de que não se tratava de uma guerra americana, sendo a presença dos americanos consequência de um exercício de "solidariedade" internacional ao Vietnã do Sul (pró-americano) que estava sendo atacado pelo Vietnã do Norte (comunista)-, a Guerra do Vietnã correu meio frouxa quanto ao controle da imprensa. Com peripécias depois narradas em livros, os correspondentes acabavam conseguindo mandar, todo dia, para jornais, rádios e TVs do mundo todo -principalmente as TVs-, cenas daquela novela diária de sangue e horror.
Na Guerra do Iraque isso mudou -já tinha mudado na Guerra do Golfo (além do que também mudou a tecnologia).
Os americanos "aprenderam" o que significa uma cobertura "descontrolada" no campo de batalha; então, o controle agora é outro -e bem estrito. Os jornalistas dificilmente conseguem notícias de primeira mão, tudo (ou quase tudo) passa pelo filtro da "inteligência" militar.
Afinal, guerra é guerra, e informação também é arma.

O "carma" americano
Para mim, existem três aspectos no trabalho de cobertura de guerra nos tempos de hoje. Um, o "carma" americano.
Dois, algo a ver com o perfil da profissão de jornalista. O terceiro aspecto diz respeito ao regime político. O carma. Os americanos cometem a bobagem, eles mesmos documentam, eles mesmos fazem chegar a documentação à imprensa e ao Congresso, nascendo daí o escândalo, a denúncia e a repercussão, com acionamento da Justiça etc.
Foi assim na maior tragédia do Vietnã -a chacina de My Lai, onde centenas de mulheres, velhos e crianças (entre elas um bebê de dois meses) foram metralhados por uma companhia do Exército americano. A própria companhia documentou a chacina, ocorrendo depois a sua divulgação por um repórter.
Foi assim com Abu Ghraib, a prisão no Iraque. Os americanos fizeram o interrogatório, a tortura, a humilhação, e eles próprios depois arranjaram um jeito de que isso aparecesse para espanto mundial. (Depois investigaram, acharam culpados e até cassaram uma militar.)
Quem já não ouviu falar dessas e de outras atrocidades dos americanos no Vietnã, no Iraque, no Afeganistão, em Guantánamo? Não é mesmo de arrepiar? Agora, quem já viu documentação jornalística da brutalidade dos russos na Tchetchênia, dos chineses no Tibete, dos norte-coreanos ou cubanos com seus cidadãos? (Alguém sabe como foi o Natal de Guillermo Rigondeaux, o atleta que ia ser medalha de ouro na Olimpíada e que, devolvido do Brasil para Cuba após os Jogos Panamericanos, voltou a viver quase como escravo em Havana, proibido inclusive de praticar o seu esporte?!)
Quanto ao perfil psicológico do jornalista, há um componente que o leva a ficar sempre do lado do mais fraco (ou do que parece mais fraco). Jornalista que se preze acha que estar ao lado do poder -seja político, econômico, militar, corporativo- é deixar de ser jornalista e virar puxa-saco. Na Guerra do Vietnã foi estabelecido -nem sei se com justiça, visto que do seu lado havia apoio da União Soviética (então a segunda potência mundial) e da China- que o "fraco" era o vietcongue, o lado comunista. Então, grande parte da cobertura jornalística foi simpática a Hanói. Meter o pau nos americanos era quase obrigação e, quase sempre, era mesmo a atitude correta, pois se tratava, ali, além da formalidade diplomática, de uma força invasora.
O último ponto que cogito em relação à cobertura jornalística é quanto ao regime político das partes envolvidas. Se se trata de uma democracia, um mínimo de respeito ao direito de informação será observado. No caso de ditadura, seja de direita (quase que não existe mais), seja de esquerda, sem chance: jornalista (que não seja "do partido" e que, então, só escreva o que o partido quer) não é aceito, e ponto final.

Inibição
Numa guerra, a presença de um correspondente faz diferença? Acompanhei durante 20 dias as atividades de uma companhia do Exército americano no Vietnã e não vi nenhum ato indigno ou cruel. No entanto, a 30 km de onde eu estava, ocorreu, com uma companhia igual à "minha", a espantosa chacina de My Lai. Se houvesse ali um jornalista, será que os soldados fariam aquilo?
Sempre pensei que a presença de um jornalista na guerra inibisse violência de americanos, de ingleses, enfim de forças de um país democrático. Outro dia, porém, vi na televisão o depoimento de um fotógrafo de Hanói que serviu ao lado vietcongue. Ele era chamado para registrar momentos importantes. Um dia foram buscá-lo para fotografar um piloto americano cujo avião tinha sido abatido. Presa grande, foto importante!
Ele foi chegando junto ao grupo de militares que cercavam o prisioneiro. Notou então seu rosto: era a expressão do horror. Os americanos bem sabiam o que os esperavam quando caíam na mão do inimigo. Os olhos daquele americano eram os de quem estava vendo à sua frente o interrogatório, a tortura, a morte lenta, com dor e humilhação. "Assim que o piloto me viu", disse o fotógrafo à televisão, "a expressão de seu rosto mudou.
Saiu o medo, e entrou a esperança...". Diante de uma câmera, ou de uma testemunha imparcial, ninguém se entrega à sua selvageria. Pode ser ingênuo, ou romântico, mas assim penso: guerra é ruim, mas guerra sem jornalista é pior.




--------------------------------------------------------------------------------
JOSÉ HAMILTON RIBEIRO é repórter especial do programa "Globo Rural". Cobriu a Guerra do Vietnã para a revista "Realidade", foi ganhador sete vezes do Prêmio Esso de Jornalismo e é autor de "O Gosto da Guerra" (Objetiva), entre outros livros.

Um comentário:

  1. Nicolau:
    recuperei as imagens da CNN do início da Guerra do Golfo I -- a primeira guerra com cobertura ao vivo...legal o texto do José Hamilton Ribeiro..
    abs, Rogério -- http://rogeriojordao.wordpress.com/

    ResponderExcluir